sábado, 13 de setembro de 2008

O Céu na Terra

O Céu na Terra
O que se sabia era que Vô Zé havia feito tudo na vida de mais extraordinário. Tudo de mais legal. Criado as palavras. Trabalhado com Deus, caçoado do Diabo. Inventado as cores e visitado a Disneylândia antes de nascer.
Vô Zé não falava, não ouvia, não se mexia há muito tempo. De tudo a mãe ajudava. Eu só sabia das histórias que, aliás, nem sei como sabia. Eu tinha dois anos e meio e o pouco tempo de vida me chegava legal com a novidade constante das coisas que se apresentavam a todo o momento. Nesse dia-a-dia de descobertas, eu e as outras crianças da minha idade enquanto brincávamos na areia ou na gangorra do parquinho, aproveitávamos e conversávamos muito sobre a existência ou não de algum elo entre as coisas que parecem ser vivas. Daninho, o que conseguia ir mais alto na balança, achava que as pedras viviam também e já era outra discussão. Ito, o melhor na construção de castelos de areia, achava que não. E só. “Não existe e não há abraço que sufoque a solidão das idéias próprias” era a máxima do futuro arquiteto. Eu dizia “para o Vó Zé, já que a gente existe, e a gente é mais de um, também existe a distância e para ele tudo é distante de tudo, mas às vezes a distância se distrai e é quando a gente consegue estar realmente perto um do outro”. “Preciso encontrar alguém que me distraia dessa forma” disse Daninho. “Mas será mesmo?”, Ito.
Vô Zé lá de vez em quando olhava para nós, eu era o que mais era visto, pois morava com ele, Daninho dizia que também, que o Vô Zé o seguiu com o olhar por uns 10 segundos. Ito nunca tinha sido acompanhado pelos olhos do velho. Vô Zé era velho, tinha 100 anos exatos, e isso fazia tempo já que eu lembre. Não tinha aniversário para ele, Vô Zé tinha nascido num dia em que ele tirou do calendário depois de uns tempos, não se sabe bem o porquê. Vô Zé agora era parado como o silêncio e parecia que para ele todos os dias eram o mesmo dia. Não sei se era o cansaço de estar sempre inventando as sensações e assim estar cansado de senti-las, ou se era uma falta de retorno de boas emoções de tudo aquilo que não era ele para com ele, seja vivo, morto, ou abstrato. Sei que éramos loucos para ver o Vô Zé comendo, pois ninguém de nós tinha visto ainda nenhum movimento exceto o dos olhos do Vô Zé, e comer todo mundo come e daí se mexe. Uma vez até, na hora da papinha, Daninho e Ito não aceitaram o aviãozinho carregado de verduras picadas,
e apontaram para o Vô Zé. Mas não aconteceu nada. Por mais que os dois chorassem bastante, nenhuma mãe entendeu o que significavam lágrimas, pequenas mãos apontando e bocas fechadas.
Ito declamou um poema pessimista sobre a imprecisão da linguagem dos símbolos infantis que eu apenas me recordo do título: “Língua Mãe”. E Daninho fez comentários sobre, “Antes de nascer, Vô Zé brincou no carrossel e um cavalinho o atropelou. Você, Ito, antes de nascer, deve ter criado o inferno, o que se for verdade, faz pouco tempo que essa opção existe, talvez todo imperador tirano tenha ido para o céu”. Eu queria falar, entrar na discussão, mas eu era o único que ainda mamava e fazia isso naquela hora, e era muito bom mamar. Tinha sido do Vô Zé a idéia de que a mulher teria alimento para seu filho, Vô Zé gostava das mulheres, foi ele quem brigou com Deus e deu para elas mais uma perna, antes disso todas as mulheres usavam muletas. E com a boca branca, eu tive uma idéia.
Era sabido, sabe-se se lá como, que Vô Zé tinha trabalhado num cemitério de flores, por muito tempo, um tempo bom, talvez o melhor tempo do Vô Zé. Daninho achava genial, em particular, essa idéia de Vô Zé, “Fico pensando no primeiro humano a admirar uma flor e com o tempo ver sua beleza se despedaçando até que apenas sobrasse uma semente, e, por respeito e pesar, atuar como um coveiro, enterrando esse corpo último da flor e aí se espantar ao perceber que da morte se germinou nova e eternamente o grão da vida”. Vô Zé tinha sido isso, um coveiro de flores. Vô Zé dizia que as pessoas se soubessem da verdade inteira seriam todas jardineiras. Eu, nunca entendi bem isso. Ito dizia que era “algo relacionado com a máquina de fazer mentira que todos alimentam quando fingem que seus corações falam”. Daninho achava que era sobre “não precisar mais buscar os mistérios plantados em nosso amor pelas coisas erradas”. Levar o Vô Zé até o seu antigo cemitério, essa era minha idéia.
“Quem sabe lá ele não se sinta mais feliz?” falei. Daninho, “Ou ao menos diferente?”. Ito ficou em pé, caiu, ficou em pé, tirou a chupeta da boca e declarou “Deus meu, mas que é que ocorre que todo mundo quer ser feliz, virou regra? Obrigação? Fim maquiavélico justificando os meios? Ah, se o fará feliz, pode assassinar o sonho alheio. Ah, se te faz bem, corra atrás do que você quer, se você é feliz sendo assim, seja. Felicidades, feliz ano novo, feliz páscoa, feliz natal, que feliz o quê? Irracional e egoísta essa busca incessante e infernal pela felicidade, uma maratona vazia cheia de perdedores com o troféu opaco da felicidade falsa”. Eu e Daninho concordamos, “É, é verdade” dissemos juntos. Um minuto de silêncio, e ressaltei a idéia de Daninho, “Ou diferente! Vô Zé pensa assim, ele sempre falava que a pior rotina é a rotina dos sentimentos, e que a dança surda dos dias pode ser sempre a mesma, mas não devemos deixar que isso contamine o ritmo das nossas emoções”. Todos consentimos enquanto nos encantávamos com um homem que passava montando um cavalo, eu e Ito achamos que aquilo era um só ser, Daninho que explicou que se tratava de um animal chamado cavalo e um ser humano em cima dele, “Meu tio tem um desses, mas é maior”.
Numa madrugada saímos, nos encontramos no quintal, repassamos o plano ainda não passado e fomos a executá-lo. Cordas de brinquedos velhos amarradas à cadeira de rodas, com muito esforço conseguimos um embalo, passamos a rampa que tinha sido feita pelo próprio Vô Zé, anos antes numa tarde em que ele escolheu que não mais ia se mexer quando tivesse 100 anos, e caímos no mundo. “Vamos caçar flores!” gritou Ito. Eu e Daninho estranhamos porém também gritamos “É!”. Chegamos à rua e a rua era realmente grande. Daninho, “Será que tem fim?”. Eu, “Deve ter um começo.” Ito, “Não, não tem”. Era uma super descida, ficamos com muito medo, nos dependuramos na cadeira, e fizemos o pleonasmo. Lá embaixo, recuperamos o fôlego e olhamos as estrelas e falei “Vô Zé tem uma de estimação, é o sol, por isso ele fica rodeando a terra, vem todo dia só para ver o Vô Zé”, “Queria ter uma e dedicar à pessoa que no futuro vai me distrair”, disse Daninho. Ito notou que Vô Zé tinha acordado.
“Olha ele olhando para lá”. Seguimos o olhar e adentramos a floresta, fomos cansando, e temendo todo e qualquer barulho da noite. Mas nos acostumamos depois, “Até parece música” disse Daninho. Vô Zé gostava de música, a gente sabia que ele tinha tido um conjunto musical quando antes e que seus colegas músicos parece que ainda eram vivos, deveriam também ter 100 anos cada. Foi nesse conjunto que Vô Zé pensou em inventar o grito das guitarras e das pessoas e depois os barulhos do mundo. E na floresta era como uma sinfonia executada pelas árvores cheias de ruídos que eram realmente enormes, pilares do templo da floresta e a luz da lua era um holofote que entrecortava tudo e iluminava o rosto do Vô Zé, parecia até que o verde tinha se alegrado ao ver o velho homem de cadeira de rodas.
Caminhamos muito, e decidimos dormir um pouco, era ruim sem alguém para nos ninar, porém o fizemos, contei a história de que Vô Zé tinha uma flor aérea, uma não, várias. Ficamos cheios de curiosidade sobre e então adormecemos e sonhamos os sonhos de criança. Quando o sol acordou, a gente também. Caminhamos mais, nós com nossos pequenos passos e Vô Zé com seus pés de roda. E era um super gigante trecho mesmo, encontramos um outro bebê que nos ajudou a atravessar um pequeno córrego, Mourinho que tinha fugido de casa, nós tínhamos ouvido mesmo falar sobre uma criança com cabelo enrolado que havia desaparecido. Contei-lhe sobre nossa viagem e que Vô Zé também tinha sido como nós, que à idade tenra já tinha o pensamento viajado e sabia falar a língua das imagens que Deus monta e ninguém se apercebe mesmo que olhem com admiração por fins de tarde inteiros. Mourinho se entusiasmou muito e prometeu uma visita. Indo embora, Daninho perguntou “Mas por que de fugir?”, “Eu vou voltar” Mourinho respondeu. E então, fomos, caminhamos mais muitas horas para o jardim e uma hora distraída, Daninho percebeu que já estávamos nele, “É aqui!”. E irradiamos todos de alegria. Havia tantas flores, tantas mais tantas que eram todas. Só Vô Zé sabia a quantidade exata porque ele tinha descoberto o fim dos números. E no meio de todas aquelas infinitas cores e cheiros, eu me perguntei sobre as flores aéreas e Daninho disse “Mas, é claro!”. E Ito disse “Mas, é lógico!”. E eu não disse nada. E Ito e Daninho apontando para o meio do jardim falaram juntos: “Lá estão as flores aéreas!”. E ali eu entendi. “Sim, flores aéreas” disse e olhei para as várias flores que habitavam o céu. E Daninho disse o que todos nós pensávamos: “São borboletas, borboletas são flores que voam”. Olhamos para o Vô Zé que derramava uma lágrima do olho direito. E era uma mistura naquele momento, como se o silêncio visitasse a casa da voz e a voz visitasse a casa das cores e as cores saíssem à rua das amarguras e das alegrias e dessas se retirassem pedaços grandes de todos os sentimentos possíveis, uma abstração que a gente sentia física.
Eu e Daninho chorávamos muito, mas não nos jogamos para trás ou rolamos no chão como sempre fazíamos, era uma confusão de sentimentos, era doído de verdade, um ruim no coração ao mesmo tempo em que uma segurança, uma segurança parecida com a vaga lembrança que tínhamos da época em que vivíamos no ventre e ainda não sabíamos o que haveria depois dele.
Ito, segurando o choro e olhando para o Vô Zé, disse “Chora o homem sobre a sua própria obra, que mais poderia? Pois, que são suas obras senão suas tentativas de distrair a distância eterna estabelecida desde que simplesmente nascemos cada um? E mesmo com a obra magnífica, o homem ainda só tem motivos ao pranto porque só admiram-na e não a ele. A obra sente falta de seu pai, mas não sentem nada por ele aqueles que louvam apenas a criação e não o criador. Ah, homem, anda a perder para os nomes, separam-te mesmo das tuas palavras, dizem e mostram que você não as é... E é como alguém que ama a luz do sol e não o próprio sol. E um dia, por assim tão sozinho, o sol vai embora ou mesmo pára de falar a voz da luz”.
Vô Zé morreu nesse dia, aos 100 anos de idade. As flores rasteiras o enterraram enquanto o céu começava a chorar em chuva. Nós voltamos para casa e crescemos.



Adrian Lincoln

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